Nise da Silveira pioneira global da psiquiatria humanizada

 A psiquiatra acreditava que a arte servia para que os doentes conseguissem ressignificar suas conexões com a realidade. Ela defendia que isso era possível por meio de suas expressões criativas e simbólicas.

Dra. Nise da Silveira (Foto/Reprodução)

   Em 1951, o poeta Ferreira Gullar (1930-2016) conheceu o trabalho da psiquiatra brasileira Nise da Silveira (1905-1999). Por meio de amigos em comum, ele soube que ela fazia um interessante — e, na época, bastante inovador — trabalho de terapia por meio da arte com os pacientes internados no Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II, no Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro.

   Silveira dirigia a seção de terapia ocupacional da instituição desde 1946 — cargo que ela conservaria até 1974. Sua bandeira, desde o início, primava pelo combate a técnicas agressivas no tratamento de pessoas com doenças mentais, como o uso inadequado de eletroconvulsoterapia (conhecida popularmente como eletrochoque), camisas de força, lobotomia, insulinoterapia e confinamento.

   Em lugar desses métodos, então praxe na época, ela preconizava um tratamento baseado na arte. A médica reinventou o próprio departamento de terapia ocupacional, antes um espaço que servia para delegar aos pacientes tarefas de limpeza e manutenção da instituição. Sob o comando dela, foram criados ateliês de pintura e modelagem.

   A psiquiatra acreditava que a arte servia para que os doentes conseguissem ressignificar suas conexões com a realidade. Ela defendia que isso era possível por meio de suas expressões criativas e simbólicas.

   Ferreira Gullar nunca deixou de acompanhar, com fascínio, a trajetória da médica, que acabou se convertendo em amiga. Em 1996 ele publicou, em livro, uma longa conversa com ela. A obra se chama Nise da Silveira - Uma Psiquiatra Rebelde. O poeta também dedicou ao tema algumas de suas colunas no jornal Folha de S. Paulo.

   Em outubro de 2006, por exemplo, ele contou a história de um "paciente magrinho chamado Emygdio" que, no ateliê de pintura do manicômio, destacou-se pela produção. "Um dia, próximo ao Natal, Nise perguntou a Emygdio que presente gostaria de ganhar e ele respondeu: 'Um guarda-chuva'. Ela concluiu que ele desejava ir embora", narrou Gullar.

   A psiquiatra, que respeitava as liberdades dos seus pacientes, ajudou a organizar uma exposição para venda dos quadros do então artista. Ele se mudou para a casa de parentes. "Muitos anos se passaram até que, certa tarde, Emygdio reapareceu, no Centro Psiquiátrico Nacional, de maleta e guarda-chuva, e informou a dra. Nise que queria reinternar-se para voltar a pintar", prossegue o texto. "E ali ficou, pintando, até completar 80 anos, quando, por lei, teve que deixar o hospital. A dra. Nise conseguiu interná-lo num asilo de velhos, onde concluiu sua existência vivida fora da História. É certo, porém, que graças a ele, há hoje no universo, além de planetas e galáxias, alguns quadros e guaches de espantosa beleza."

"Ela foi uma das pioneiras na utilização da arte como terapia e estratégia de emancipação da pessoa em sofrimento psíquico e foi fundamental na criação de um movimento crítico no campo da saúde mental", complementa Amarante.

"O legado da Nise da Silveira é enorme, foi uma verdadeira pioneira global da psiquiatria humanizada, baseada na arte, na criatividade e nos vínculos afetivos com humanos e outros animais - e não no uso excessivo de medicamentos altamente dopantes", afirma o neurocientista e biólogo Sidarta Ribeiro, professor titular e vice-diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

FONTE: BBC


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